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PIRAJÁ

Caixa Cultural São Paulo - SP

27 de agosto a 03 de novembro de 2019 

Curadoria: Fernanda Lopes

Fotos: Vicente de Mello

Ao som do tilintar das chaves

Quando era criança, ele gostava de brincar de esconde-esconde correndo pela casa. O pai e os irmãos saíam para trabalhar e, naquele espaço de planta circular, quase labiríntica, ficavam ele e a mãe. Era fácil fugir dos chamados dela. Não só pela agilidade que a diferença de idade lhe garantia, e as inúmeras rotas de fuga escondidas na arquitetura que ele conhecia bem, mas principalmente pelo tilintar das chaves que ela sempre carregava consigo. A mãe tinha mania de trancar tudo. Até a dispensa. E por isso não se separava do molho de chaves. Seu caminhar era marcado pelo barulho que elas, muitas, faziam, batendo uma na outra, no ritmo dos passos. Para ter acesso às portas daquela casa-labirinto era preciso autorização da dona do lar, a mãe-guardiã.

A casa no bairro Pirajá, onde Renato Morcatti nasceu e viveu os primeiros 10 anos de vida, é hoje onde o artista voltou a viver e estabeleceu seu ateliê. Durante o tempo em que a família permaneceu em Contagem (cidade satélite de Belo Horizonte), ela esteve alugada e um dos quartos, trancado todos esses anos, guardava parte dos móveis da família. Ao voltar para a casa da sua infância, Renato conviveu por um tempo com o espaço vazio e com as lembranças. Até que decidiu retirar os móveis do quartinho e voltar com eles para seus lugares de origem. “Vocês também vão voltar para casa”.

Parte da produção recente do artista está ligada a essa volta para casa. Hoje um bairro residencial de Belo Horizonte, originalmente o Pirajá foi um bairro formado por agricultores, que se estruturou perto da estação de trem. Lá eles criaram um mercado cooperativo para distribuir o que produziam. Talvez não por coincidência, a palavra de origem Tupi que dá nome ao bairro faça referência à elementos individuais em condição de agrupamento. “Pira” que dizer “peixes” e “já” se refere a “repleto”, tendo como significado “o que está repleto de peixes”.

Pirajá ­revela já no nome elementos importantes da poética de Morcatti. Como cardumes, as séries de esculturas e desenhos apresentam seu interesse pelo múltiplo, pela profusão, pela repetição e por peças pensadas individualmente que também assumem dimensões de conjunto, que se organizam, reorganizam e reconfiguram a cada momento, a cada momento em que são expostos. É o caso por exemplo de Nós  (2016/2018). O conjunto de mais de 200 chaves feitas em cerâmica estão organizadas em molhos de duas, três ou quarto chaves cada um, como o molho que tilintava no bolso da mãe que corria atrás do filho pela casa.

Suspensas em um vergalho, como um varal, elas nos apresentam dois pontos de vista: guardando certa distância vemos o conjunto, como um corpo único, com forte presença física no espaço. Ao nos aproximarmos, conseguimos ver cada uma das chaves, e reparar que todas, apesar de serem chaves, são diferentes entre si. Aqui temos outro ponto importante na poética de Morcatti: a multiplicação que se interessa não pela unidade, pela padronização, mas pelas diferentes possibilidades de ser o mesmo.  Uma dinâmica que se dá no próprio processo de cerâmica escolhido pelo artista, mas que também é resultado dele fazer as peças uma a uma.

Acostumado a trabalhar com materiais diversos, como madeira, argila, cimento e aço, Morcatti incluiu a cerâmica em seu repertório escultórico desde 2017. Parte do resultado dessa nova pesquisa é o que pode ser visto neste conjunto recente de trabalhos. Ao invés de grandes esculturas, essas séries são formadas pela repetição e acúmulo de objetos cerâmicos de pequenos formatos realizados em três técnicas distintas – o entalhe, a modelagem e a fundição. Queimadas no estilo de Bizen, as peças são levadas ao forno sem esmaltagem, realçando a textura e a cor crua natural do material.

Há algo de ritualístico no processo da cerâmica. Ele pede paciência, pede tempo. É um trabalho que chama o coletivo, que exige o trabalho conjunto, a presença do(s) outro(s). Na técnica escolhida por Morcatti, é preciso várias pessoas para montar o forno, de cerca de 9m de diâmetro e 1,5m de altura. Por conta das grandes dimensões, as queimas são coletivas. Peças de diferentes autorias são colocadas juntas e é preciso a ajuda de todos, como em uma vigília, para controlar a temperatura do forno, que pode chegar a 1300 graus. É preciso alguns dias para o forno chegar à temperatura ideal e depois mais alguns dias para que ela baixe e as peças possa ser retiradas.

Essa dimensão ritualística, quase alquímica, permanece presente nas obras de Renato. Além das imagens de chaves e peixes evocadas por essas obras e referências já citadas – e que também estão presentes em diferentes religiões, mitologias e tradições –, há os Guardiões (2017/2018), feitos em cerâmica, que normalmente o artista posiciona ao lado da porta principal de entrada ou no alto da parede, oferecendo proteção e guarda. Todos localizados em uma altura acima da cabeça dos visitantes. Eles são como vigias, sempre “olhando” as pessoas de cima, mas também fazendo com que o visitante desloque sua postura convencional dentro de um espaço de arte. Acostumados a ter as obras montadas tendo a altura do olhar como referência de posicionamento, eles agora tem que olhar para cima para poder ver a obra.

Aqui é importante ressaltar a dimensão da presença do corpo pela qual a produção de Renato Morcatti se interessa. Não me refiro à biografia, apesar deste texto começar com uma história pessoal do artista, mas ao corpo físico.  Ao caminhar por esses trabalhos, o espectador não tem como fugir do aspecto sensorial das peças: além da memória afetiva pessoal do barulho de chaves (em Nós) e do deslocamento do olhar (com os Guardiões), há também a necessidade de reposicionamento do corpo para poder ver trabalhos como Segredos (2017/2018), que reúne 300 peças de cerâmica montadas na altura do chão. É preciso se abaixar para poder ver. O corpo do espectador é colocado em posição quase de reverência ao praticamente se ajoelhar para se aproximar da obra. Entre (2017) também “pede” essa outra postura. O título é como um convite ou desafio a quem está do lado de fora da estrutura de aço que lembra uma grande gaiola. Dentro dela estão peças em cerâmica e tijolos.

O corpo do artista também é usado como medida. Além de moldar uma a uma as peças das series Nós e Segredos, dando uma espécie de personalidade individual a cada elemento desses grandes conjuntos, em Escala Madre (2017), os desenhos de corpo inteiro dos guardiões são feitos em escala natural, tendo o corpo do artista como referência. Todos os guardiões tem 1,78m de altura (mesma altura de Renato) e trazem no lugar da cabeça, ferramentas de trabalho manual, como enxadas e pás. Em Escala 3x4 (2017) temos a mesma lógica mas em desenhos feitos só dos “rostos”. Nessas séries, realizadas com carvão, gravite e pigmento natural, a repetição, base da escultura, também é um elemento fundamental. Aqui, isso se dá no número de folhas e em sua organização em sequência, mas também nas formas que, apesar da unidade, mantém evidentes os múltiplos traços que as constituem. Nesse sentido, ver esse conjunto de trabalhos reunidos é ter também a possibilidade de pensar como uma lógica escultórica permanece presente no plano bidimensional, e, ao mesmo tempo, como aspectos fundamentais do desenho se fazem presentes nas esculturas.

 

Texto Curadoria: Fernanda Lopes

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